terça-feira, 30 de outubro de 2012

A arte de conviver



Conta-se que alguns milênios atrás, quando o gelo cobria grande parte do globo terrestre, muitos animais desapareceram porque não resistiram ao intenso frio. Uma manada de porcos-espinhos, procurando sobreviver, passou a morar em uma caverna. Para se proteger do pesado frio, encostavam-se uns nos outros. Cada um, assim, esquentava-se com o calor dos demais. O tempo foi passando e a manada cresceu. Sendo agora mais numerosos, tinham melhores condições de enfrentar aqueles animais que eram mais ferozes e fortes, e dos quais antes fugiam. Cada novo inverno os encontrava mais unidos, mais protegidos e resistentes. De repente, porém, passaram a se esquecer da proteção e do calor que recebiam dos outros. Começaram a reclamar dos espinhos dos companheiros e das feridas que nasciam pelo fato de viverem tão próximos. Esqueceram-se do rigor do inverno e  se separaram. De início, sentiram uma agradável sensação de liberdade e de alívio: não precisavam mais ter de suportar os dolorosos espinhos dos companheiros. Estavam livres dos sofrimentos! Mas a sensação de liberdade não durou muito: isolados, passaram a morrer congelados. Seu número diminuía continuamente. Alguns sobreviventes perceberam que também morreriam se não voltassem a se proteger mutuamente. Então, quando começou um novo inverno, dirigiram-se à antiga caverna. Procuraram, novamente, ficar perto dos demais, mas só o suficiente para se esquentar. Lembrados dos espinhos que cada um tinha, evitavam aproximações que pudessem causar novos sofrimentos. Descobriram que a convivência impunha-lhes limitações e dificuldades, mas somente dessa maneira tinham condições de sobreviver. Puderam, dessa maneira, atravessar a era glacial, enquanto que outras espécies de animais desapareceram, por causa do frio.
Viver é conviver. Temos o dom de nos acostumar com os nossos próprios defeitos e manias. Julgamos até que eles são verdadeiras virtudes – daí nossa reação, interna ou externa, quando alguém ousa nos criticar. Achamos que os outros, sim, é que tem comportamentos insuportáveis; são chatos, desagradáveis e não percebem os aborrecimentos que nos causam. Por que não mudam de comportamento? Por que não se esforçam para serem melhores? Por que temos de suportá-los?
Se tivéssemos a coragem de promover uma grande reunião com todas as pessoas que convivem conosco, e lhes pedíssemos que apontassem nossos defeitos, talvez a reunião terminasse de maneira trágica: riscaríamos esses amigos e conhecidos de nossa agenda. “Afinal, onde já se viu dizer aquilo tudo de mim? E eu que pensava que fossem meus amigos!…”
Quem somos? O que pensamos ser ou o que os outros pensam de nós? Somos o que pensamos ser; somos o que os outros pensam de nós; mas somos, acima de tudo, o que Deus pensa de nós. Só Ele tem uma visão global a nosso respeito. É o único que nunca se decepciona conosco. É que uma decepção tem como origem determinada expectativa não realizada. Ora, Ele sabe que somos pó, frágeis e fracos. Nós é que nos julgamos muito sábios e santos. Os outros talvez reajam contra nós porque sentem nossos “espinhos”. (Na verdade, para um porco-espinho, os próprios espinhos não incomodam; desagradáveis são os espinhos dos companheiros…).
Viver é conviver. É mais do que isso: é crescer nos relacionamentos. E cresceremos se nossos relacionamentos forem marcados pelo amor. O amor cristão (“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” – Jesus Cristo) não se fundamenta nas virtudes dos outros, em sua bondade, delicadeza ou simpatia. A fonte desse amor é a gratuidade. Somos chamados a amar o próximo não porque ele seja bom; devemos amá-lo para que se torne bom e, acima de tudo, porque é uma imagem e semelhança de Deus. Talvez, em algumas pessoas, essa imagem não esteja muito nítida; poderá, até, estar deformada e feia. Não nos cabe julgar as razões disso e menos direito temos de condená-las. Amar é olhar cada pessoa com o olhar de Jesus Cristo – um olhar que é marcado pela misericórdia e pelo perdão, pelo carinho e pela a capacidade de fazer nosso o sofrimento do outro.

Por Dom Murilo S.R. Krieger, scj, Arcebispo de São Salvador da Bahia – BA

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