sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Memórias



    “Meu Deus, me dá cinco anos! 
            Me cura de ser grande”. 
                         (Adélia Prado)


Meninos pulando Carniça, Cândido Portinari, 1957.
            A nossa vida fundamenta-se nas memórias! Memória é onde guardamos as coisas do passado. Há dois tipos de memória: memórias sem vida própria e memórias com vida própria.
            As memórias sem vida própria são inertes. Não tem vontade. Sua existência é semelhante à das ferramentas guardadas numa caixa. Não se mexem. Ficam imóveis nos seus lugares, à espera. À espera de quê? À espera de que as chamemos. Ao chegar a um hotel, a recepcionista nos entrega uma ficha para ser preenchida. Lá estão os espaços em branco onde teremos que escrever nosso nome, endereço, número da carteira de identidade, do CPF, número do telefone, e-mail. Abrimos a nossa caixa de memórias sem vida própria e encontramos as informações pedidas.
            São essas as memórias que os neurologistas testam para ver se uma pessoa está sofrendo do mal de Alzheimer. O médico, como quem não quer nada, vai discretamente fazendo perguntas sobre a cidade onde nascemos, o nome dos pais. Se a pessoa não souber responder é porque sua caixa de memórias está vazia. Essas memórias são importantes. Sem elas não poderíamos nos virar na vida. Estaríamos perdidos.      
   
            As memórias com vida própria, ao contrário, não ficam quietas dentro de uma caixa. São como pássaros em vôo. Vão para onde querem. E podemos chamá-las que elas não vêm. Só vêm quando querem. Moram em nós, mas não nos pertence. O seu aparecimento é sempre uma surpresa. É que nem suspeitávamos que estivessem vivas! Vamos caminhando calmamente pela rua e, de repente, um cheiro de pão. E nos lembramos de nossa infância.
            “Alma” é o nome do lugar onde se encontram esses pedaços perdidos de nós mesmos. São partes do nosso corpo como as pernas, os braços, o coração. Circulam no sangue, estão misturadas com os nossos músculos. Quando elas aparecem o corpo se comove, ri, chora...
            Para que elas servem? Para nada. Elas aparecem por causa da saudade. A alma é movida pela saudade. A alma não tem o menor interesse no futuro. A saudade é uma coisa que fica andando pelo tempo passado à procura dos pedaços de nós mesmos que se perderam. “A vida se retrata no tempo formando um vitral, de desenho sempre incompleto, de cores variadas, brilhantes, quando passa o sol. Pedradas ao acaso acontece de partir pedaços ficando buracos. Os cacos se perdem por aí. Às vezes encontro cacos de vida que foram meus, que foram vivos. Examino-os atentamente tentando lembrar de que resto faziam parte. Já achei caco pequeno e amarelinho que ressuscitou de mentira, um velho amigo. Achei outro pontudo e azul, que trouxe em nuvens um beijo antigo. Houve um caco vermelho que me fez chorar, sem que eu lembrasse de onde me pertencia” (Maria Antônia de Oliveira, Ceriguela, p.14). É com esses cacos de memória, pedaços de nós mesmos, que procuramos o espaço para o desenho de nossa vida. Memória e saudade caminham juntas e torna-se impossível de separá-las e confundimos uma com a outra. Adélia Prado sabia muito bem disso quando disse: “O que a memória amou fica eterno”.
            Nietzsche, filósofo- poeta, dizia que o centro da sua filosofia é o retorno à infância, isto é, “a maturidade de um homem é encontrar de novo a seriedade que se tinha quando criança, brincando”. Brincar para a criança sempre é uma fonte de alegria e prazer. “Deus é alegria. Uma criança é alegria. Deus e a criança têm isso em comum: ambos sabem que o universo é uma caixa de brinquedos. Deus vê o mundo com olhos de criança. Está sempre à procura de companheiros para brincar” (Rubem Alves). Fomos expulsos do Paraíso quando perdemos essa capacidade de olhar e de brincar. Transformamo-nos em crianças que brincavam em adultos que trabalham. Nossos olhos eram encantados. Eles eram dotados daquela qualidade que, para os gregos, era o início do pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal. Os olhos nascem brincalhões e vagabundos – veem pelo puro prazer de ver, coisa que, vez por outra, aparece ainda nos adultos no prazer de ver figuras. Coitados dos adultos! Arrancaram os olhos vagabundos e brincalhões de crianças e os substituíram por olhos ferramentas de trabalho.
            São muitos os estudos da psicologia das crianças. Estudando as crianças para ensiná-las a maneira adulta de ser. Não conheço estudos que tenham por objetivo o contrário: ensinar aos adultos a maneira de voltar a ser criança. Rubem Alves escrevendo sobre as crianças, afirma que “as crianças, do jeito  como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma. Criança não são para ser usadas como ferramentas. Elas são gozadas, como brinquedos... Os olhos, diferentemente do resto do corpo, preservam para sempre a propriedade divina do rejuvenescimento. O sábio é um adulto com olhos de criança”. Essa idéia de infância é constante nos textos sagrados e de uma grande parte da mística cristã, como, por exemplo, o Caminho de Infância de Santa Tereza do Menino Jesus, ao lembrar-se das passagens que diz: ”Em verdade vos digo, se não mudardes e não vos tornardes como as crianças, de modo nenhum entrareis no Reino do Céus", ou "Em verdade vos digo, aquele que não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele". Bachelard, outro filósofo-poeta, afirma que “a infância do homem levanta o problema de toda a sua vida: cabe à idade madura encontrar-lhe a solução”. Acho que foi por isso que Jesus Cristo, diante dos homens velhos e carrancudos proclamou uma verdade que abalaria todo o processo da maturação humana quando disse: "Deixa vir a mim as criancinhas, por que delas são todas as bolinhas de gude do Reino dos Céus" (ou quase isso!).

Autor: Ramires Karamázov

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