“Meu Deus, me dá cinco anos!
Me
cura de ser grande”.
(Adélia Prado)
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Meninos pulando Carniça, Cândido Portinari, 1957. |
A nossa vida fundamenta-se nas memórias! Memória é onde guardamos as coisas do
passado. Há dois tipos de memória: memórias sem vida própria e memórias com
vida própria.
As memórias sem vida própria são inertes. Não tem vontade. Sua existência é
semelhante à das ferramentas guardadas numa caixa. Não se mexem. Ficam imóveis
nos seus lugares, à espera. À espera de quê? À espera de que as chamemos. Ao
chegar a um hotel, a recepcionista nos entrega uma ficha para ser preenchida.
Lá estão os espaços em branco onde teremos que escrever nosso nome, endereço,
número da carteira de identidade, do CPF, número do telefone, e-mail.
Abrimos a nossa caixa de memórias sem vida própria e encontramos as informações
pedidas.
São essas as memórias que os neurologistas testam para ver se uma pessoa está
sofrendo do mal de Alzheimer. O médico, como quem não quer nada, vai
discretamente fazendo perguntas sobre a cidade onde nascemos, o nome dos pais.
Se a pessoa não souber responder é porque sua caixa de memórias está vazia.
Essas memórias são importantes. Sem elas não poderíamos nos virar na vida.
Estaríamos perdidos.
As memórias com vida própria, ao contrário, não ficam quietas dentro de uma
caixa. São como pássaros em vôo. Vão para onde querem. E podemos chamá-las que
elas não vêm. Só vêm quando querem. Moram em nós, mas não nos pertence. O seu
aparecimento é sempre uma surpresa. É que nem suspeitávamos que estivessem
vivas! Vamos caminhando calmamente pela rua e, de repente, um cheiro de pão. E
nos lembramos de nossa infância.
“Alma” é o nome do lugar onde se encontram esses pedaços perdidos de nós
mesmos. São partes do nosso corpo como as pernas, os braços, o coração.
Circulam no sangue, estão misturadas com os nossos músculos. Quando elas
aparecem o corpo se comove, ri, chora...
Para que elas servem? Para nada. Elas aparecem por causa da saudade. A alma é
movida pela saudade. A alma não tem o menor interesse no futuro. A saudade é
uma coisa que fica andando pelo tempo passado à procura dos pedaços de nós
mesmos que se perderam. “A vida se retrata no tempo formando um vitral, de
desenho sempre incompleto, de cores variadas, brilhantes, quando passa o sol.
Pedradas ao acaso acontece de partir pedaços ficando buracos. Os cacos se
perdem por aí. Às vezes encontro cacos de vida que foram meus, que foram vivos.
Examino-os atentamente tentando lembrar de que resto faziam parte. Já achei
caco pequeno e amarelinho que ressuscitou de mentira, um velho amigo. Achei
outro pontudo e azul, que trouxe em nuvens um beijo antigo. Houve um caco
vermelho que me fez chorar, sem que eu lembrasse de onde me pertencia” (Maria
Antônia de Oliveira, Ceriguela, p.14). É com esses cacos de memória, pedaços de
nós mesmos, que procuramos o espaço para o desenho de nossa vida. Memória e
saudade caminham juntas e torna-se impossível de separá-las e confundimos uma
com a outra. Adélia Prado sabia muito bem disso quando disse: “O que a memória
amou fica eterno”.
Nietzsche, filósofo- poeta, dizia que o centro da sua filosofia é o retorno à
infância, isto é, “a maturidade de um homem é encontrar de novo a seriedade que
se tinha quando criança, brincando”. Brincar para a criança sempre é uma fonte
de alegria e prazer. “Deus é alegria. Uma criança é alegria. Deus e a criança
têm isso em comum: ambos sabem que o universo é uma caixa de brinquedos. Deus
vê o mundo com olhos de criança. Está sempre à procura de companheiros para
brincar” (Rubem Alves). Fomos expulsos do Paraíso quando perdemos essa
capacidade de olhar e de brincar. Transformamo-nos em crianças que brincavam em
adultos que trabalham. Nossos olhos eram encantados. Eles eram dotados daquela
qualidade que, para os gregos, era o início do pensamento: a capacidade de se
assombrar diante do banal. Os olhos nascem brincalhões e vagabundos – veem pelo
puro prazer de ver, coisa que, vez por outra, aparece ainda nos adultos no prazer
de ver figuras. Coitados dos adultos! Arrancaram os olhos vagabundos e
brincalhões de crianças e os substituíram por olhos ferramentas de trabalho.
São muitos os estudos da psicologia das crianças. Estudando as crianças para
ensiná-las a maneira adulta de ser. Não conheço estudos que tenham por objetivo
o contrário: ensinar aos adultos a maneira de voltar a ser criança. Rubem Alves
escrevendo sobre as crianças, afirma que “as crianças, do jeito como saem
das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma. Criança
não são para ser usadas como ferramentas. Elas são gozadas, como brinquedos...
Os olhos, diferentemente do resto do corpo, preservam para sempre a propriedade
divina do rejuvenescimento. O sábio é um adulto com olhos de criança”. Essa
idéia de infância é constante nos textos sagrados e de uma grande parte da
mística cristã, como, por exemplo, o Caminho de Infância de Santa
Tereza do Menino Jesus, ao lembrar-se das passagens que diz: ”Em verdade vos
digo, se não mudardes e não vos tornardes como as crianças, de modo nenhum
entrareis no Reino do Céus", ou "Em verdade vos digo, aquele que
não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele". Bachelard,
outro filósofo-poeta, afirma que “a infância do homem levanta o problema de
toda a sua vida: cabe à idade madura encontrar-lhe a solução”. Acho que foi por
isso que Jesus Cristo, diante dos homens velhos e carrancudos proclamou uma
verdade que abalaria todo o processo da maturação humana quando disse: "Deixa
vir a mim as criancinhas, por que delas são todas as bolinhas de gude do Reino
dos Céus" (ou quase isso!).
Autor: Ramires Karamázov
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