No dia 11 de outubro passado, a
Praça de São Pedro recordou um dos momentos memoráveis da história da Igreja
Católica no século XX: a abertura do Concílio Ecumênico Vaticano II, ocorrida
nesse mesmo dia de outubro, em 1962.
Um dos pontos salientes do
Concílio foi a sua rica antropologia, que recolheu o pensamento cristão
amadurecido durante séculos e que desejo retratar aqui, com breves acenos.
Entre as primeiras perguntas da filosofia estão as que se referem ao próprio
homem: quem, afinal, é o homem? Que sentido tem sua vida? Quanto vale cada ser
humano em particular?
As guerras e as tragédias
humanitárias da primeira metade do século XX haviam ferido e desfigurado
profundamente a imagem do ser humano, que precisava ser restaurada. A
Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, representou uma síntese do
esforço comum feito pela comunidade política, para afirmar a dignidade e os
direitos humanos; para ela contribuíram varias correntes do pensamento
filosófico e religioso da humanidade, incluindo o pensamento católico.
O Concílio Vaticano II, porém,
deu origem a uma verdadeira “virada antropológica” na reflexão teológica e
filosófica católica e na própria vida prática da Igreja; e isso foi traduzido
numa atenção muito especial para com o ser humano. Não é que a Igreja Católica,
enquanto religião, tenha deixado de lado Deus, como referencial primeiro e
último da religião: ao contrário, foi por causa de sua convicção sobre Deus, e
por levar Deus plenamente a sério que a Igreja passou mais às conseqüências de
sua fé no trato com o ser humano. O próprio ensinamento de Jesus já resumiu
toda a Lei de Deus no duplo e inseparável amor – a Deus e ao próximo. E o
apóstolo São João questionava com veemência quem já o havia esquecido: “irmãos,
como pode alguém dizer que ama a Deus, a quem não vê, se não ama ao próximo que
vê?”
A antropologia decorrente da fé
cristã vem dos textos bíblicos, onde se aprende que Deus tem um olhar de
predileção por todo ser humano; tendo-o criado “à sua imagem e semelhança”,
confiou-lhe também parte na responsabilidade sobre o “jardim”, onde se encontra
toda sorte de criaturas. O próprio homem, tomando consciência da distinção com
que é tratado pelo Criador no meio das demais criaturas, cheio de estupor, numa
noite de céu estrelado, exclama: “Senhor, como é grande o vosso nome em todo o
universo! Que é o homem, para que dele vos lembreis? Um filho de homem, para
que vos ocupeis com ele tanto assim?!” (cf. Sl 8).
A síntese da antropologia cristã
foi expressa de maneira singular na Constituição Pastoral Gaudium et Spes (nº
22), do Concílio Vaticano II, e recebeu grande contribuição de filósofos, como
Jacques Maritain e Edith Stein, e teólogos, como Henri Delubac e Hans Urs Von
Balthasar; nela, foi trazida novamente à tona a sua fonte inspiradora e
referência primeira, que e o mistério da “humanidade de Deus”, manifestado ao
mundo em Jesus Cristo. Já perguntavam os teólogos antigos: por que o Filho de
Deus se fez homem? E a resposta mais extraordinária é esta: por puro amor ao
homem e para lhe mostrar quanto valor ele tem.
O papa João Paulo II gostava de
repetir esta afirmação do Concílio: em Jesus Cristo, Deus revelou plenamente o
homem ao próprio homem! A fé cristã, por isso, tem um conceito muito elevado do
ser humano, base para a afirmação de sua dignidade e de seus direitos
inalienáveis. Nada do que é autenticamente humano deixa de ter importância para
a relação do homem com Deus; e os seus anseios de liberdade, paz, felicidade e
realização plena devem ser levados plenamente a sério.
Cada ser humano é pessoa, é única
e irrepetível. E cada pessoa è uma consciência, uma liberdade, uma
individualidade, uma subjetividade. Nada mais contrário à visão cristã do ser
humano do que a massificação despersonalizante, onde os seres humanos somam
números em vez de rostos e são apenas representados em estatísticas. Nem
corresponde à visão cristã do homem que sua força motivadora maior seja a
inimizade contra o outro homem – “homo hominis lupo”. Cada ser humano tem uma
história pessoal e uma contribuição a dar ao bem comum. O amor é, de fato, a
força maior que une e harmoniza as relações humanas.
Algumas vertentes do pensamento
moderno e contemporâneo têm Deus como o grande obstáculo à felicidade do homem
que, por isso, deveria tirá-lo de seu caminho para ser feliz. Para a
antropologia cristã, ao contrário, Deus é a condição de possibilidade para o
sentido da existência humana; sem a referência a Deus, o homem permanece um
enigma, fechado na estreiteza de seu próprio horizonte, nunca suficientemente
largo e luminoso para justificar suas aspirações e buscas de felicidade.
O homem não é fruto de um acaso
cego, mas deve sua origem a um querer amoroso de Deus; nem é prisioneiro de
forças externas, que o enredam em tramas favoráveis ou adversas, das quais ele
não se pode livrar. Ele é livre e capaz de viver com sentido e de alcançar a
felicidade e a paz, quando acolhe o desígnio de Deus e colabora de maneira
responsável na sua obra, quer na vida pessoal, quer na vida social e no cuidado
do mundo. O homem é chamado a ser colaborador livre e responsável com Deus e
aqui está o fundamento último da vida moral.
A vida do homem não se esgota
neste mundo, feito ainda de realidades contingentes e precárias; ele próprio
também está sujeito a essa precariedade, mas é chamado à vida em plenitude,
junto de Deus. De fato, desde agora, o homem já é capaz de acolher a
manifestação de Deus, conhecendo de alguma forma o seu ser, seu desígnio de
amor e salvação e de sintonizar com ele. E aqui está o fundamento maior de sua
dignidade.
Por Cardeal Odilo Pedro Scherer –
Arcebispo de São Paulo (SP)
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